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terça-feira, 3 de abril de 2012

Reportagens sobre Indisciplina na Escola

Estratégias para vencer a indisciplina
Estratégias inteligentes e o exercício justo da autoridade são formas eficazes de enfrentar a indisciplina


CALVIN E A INDISCPLINA Personagem do americano Bill Watterson questiona com irreverência as regras e proibições da escola
A indisciplina, dizem educadores de todo o país, é o maior problema da sala de aula - e da escola. Porém essa realidade (apontada em pesquisa feita pela Fundação Victor Civita e pelo Ibope com 500 professores) está longe de ser a verdadeira responsável pela dificuldade de ensinar: o que, de fato, impede o trabalho docente é a falta de adequação do processo de ensino. É isso que mostra a reportagem de capa de NOVA ESCOLA de outubro. A revista traz ainda o projeto institucional Repensar a Indisciplina, com consultoria de Ana Aragão, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Partindo do princípio de que as estratégias de repressão usadas por muitas escolas são pontuais, imediatistas e ineficazes, a revista aponta soluções para encarar o problema. Longe de ser um manual, esses passos são o ponto de partida para um trabalho que requer o envolvimento de toda a equipe. Confira um resumo das recomendações dos especialistas consultados por NOVA ESCOLA.

Distinguir as regras
A indisciplina é a transgressão de dois tipos de regra: as de natureza moral (baseadas em princípios éticos, que visam o bem comum, e por isso valem para todas as instituições e para qualquer situação, como não bater, não xingar e não mentir) e as convencionais (que variam de escola para escola, como as que se referem ao uso de celular, uniforme e boné). Com frequência, os regimentos escolares erram ao colocar essas duas situações em um mesmo patamar. É importante distingui-las para entender melhor a indisciplina e lidar com ela.

Equilibrar a reação
Pesquisa com 55 diretores realizada por Isabel Leme para a Universidade de São Paulo, em 2006, mostrou que a gestão de conflitos é vista por 85% deles como fundamental para garantir a paz na escola. Mas, alertam os especialistas, o que se vê na prática é menos uma abordagem para entender o problema (e lidar com ele) e muito mais a tentativa de evitar qualquer distúrbio. Quando uma situação foge do controle imposto, a reação é mandar os alunos para a diretoria. O caminho sugerido em NOVA ESCOLA é outro: dialogar sempre, ouvindo as partes e demonstrando respeito pelos valores de cada um.

Conquistar a autoridade
Toda vez que se tenta impor a disciplina com autoritarismo, surge a revolta. Com mais conhecimento, todo professor adquire segurança em relação aos conteúdos didáticos e aprende a planejar aulas eficazes. Pode parecer simples, mas isso é essencial para manter a disciplina e fazer com que todos aprendam. "É preciso diversificar a metodologia, pois interagimos com alunos conectados ao mundo de diferentes maneiras", diz Maria Tereza Trevisol, professora da Universidade do Oeste de Santa Catarina, campus de Joaçaba, a 371 quilômetros de Florianópolis.

Incentivar a cooperação
Esforçar-se para construir um clima escolar de qualidade, no qual os estudantes sejam respeitados e aprendam a respeitar, traz recompensa: um comportamento adequado porque todos têm consciência de seu papel na escola e não por medo de castigos. Nessa situação, professores e gestores são vistos como figuras de autoridade moral e intelectual, capazes de negociações justas com a garotada (nunca autoritárias).

Agir com calma
Em uma situação de indisciplina, é preciso, sim, manifestar contrariedade. Sem exaltações, mostrar ao aluno que todo o grupo é prejudicado vai ajudá-lo a perceber as consequências de suas ações e aprender como agir em outras situações similares.

Ficar sempre alerta
Cabe à escola cultivar um ambiente de cooperação e respeito, pois é de esperar que casos de indisciplina surjam sempre. Mesmo com a equipe capacitada para agir de forma mais confiante em relação ao problema, sempre haverá novos professores e alunos, que precisarão de tempo para se adequar a essa maneira de encarar os conflitos.

Estimular a autonomia
Às vezes, os alunos agem de forma indisciplinada para demonstrar que alguma regra não funciona. Em alguns casos, eles querem chamar a atenção para as próprias ideias. Ao conviver num ambiente pautado pelo respeito e pela negociação das normas, os estudantes aprendem a tomar decisões responsáveis.

Publicado em NOVA ESCOLA GESTÃO ESCOLAR, Edição 004, Outubro/Novembro 2009, Título original: Estratégias para vencer a indisciplina



Yves de La Taille: "Nossos alunos precisam de princípios, e não só de regras"
Para o psicólogo, a escola deve investir em formação ética no convívio entre alunos, professores e funcionários para vencer a indisciplina.

YVES DE LA TAILLE
Agressões, humilhação, ausência de limites. Nove em cada dez educadores reclamam que as salas de aula estão cada vez mais incivilizadas e que é preciso dar um basta. Para resolver o problema, nove entre dez escolas recorrem a regras de controle e punição. "É legitimo, mas é pouco. É preciso criar uma lei para coibir algo que o bom senso por si só deveria banir?", questiona Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Especialista em Psicologia Moral (a ciência que investiga os processos mentais que levam alguém a obedecer ou não a regras e valores), ele defende que a escola ajude a formar pessoas capazes de resolver conflitos coletivamente, pautadas pelo respeito a princípios discutidos pela comunidade. O caminho para chegar lá passa pela formação ética - não necessariamente como conteúdo didático, mas principalmente no convívio diário dentro da instituição.

Co-autor dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) sobre Temas Transversais, La Taille aponta que a tentativa de abordar assuntos como ética, orientação sexual e meio ambiente de maneira coordenada em várias disciplinas não funcionou no Brasil. "É uma proposta sofisticada que não se transformou em realidade." Nesta entrevista concedida a NOVA ESCOLA, o ganhador do Prêmio Jabuti de 2007 na categoria Educação, Psicologia e Psicanálise, com o livro Moral e Ética, Dimensões Educacionais e Afetivas, indica caminhos para trabalhar esses temas no ambiente escolar.
Políticos, educadores e a sociedade cada vez mais pedem ética para solucionar problemas  sociais. 

A que se atribui essa demanda? 
YVES DE LA TAILLE Existe uma situação de medo, uma percepção de que as relações humanas estão cada vez mais desrespeitosas. Mas creio que a demanda social não seja realmente por ética. O clamor, na verdade, é por normatização. Tanto que hoje temos uma espécie de hiperinflação de leis. Um exemplo é o projeto aprovado pela Assembléia Legislativa de São Paulo proibindo o uso de celulares dentro das classes. É claro que atender ao aparelho durante a aula atrapalha, mas como a escola enfrenta esse problema? Criando uma regra de controle em vez de discutir os valores envolvidos nessa situação - o respeito ao outro, por exemplo. Penso que deveria haver uma regulação social, e não uma regulação estatal, para esses comportamentos. 

O que significa isso?
LA TAILLE
Significa que a própria sociedade deveria ser capaz de administrar essas atitudes. O professor, por exemplo, tem a possibilidade de dizer: "Não vamos usar o celular porque isso atrapalha a aula, a não ser numa emergência". Quando uma lei exterior resolve até os mínimos conflitos, cria-se uma sociedade infantil. Já a formação ética, em vez da simples normatização, discute as relações com outras pessoas, as responsabilidades de cada um e os princípios e valores que dão sentido à vida.


Como a escola pode discutir princípios e valores?
LA TAILLE
Antes de tudo ela tem de eleger seus próprios princípios, coerentes com a
Constituição brasileira: liberdade, respeito, igualdade, justiça, dignidade... É fundamental,
ainda, deixar claro aos estudantes e pais quais são esses princípios, defendendo-os com unhas e dentes. Por exemplo, se um aluno for humilhado, ferindo o princípio da dignidade, algumacoisa precisa ser feita. Aí entram debates, reuniões e assembléias para discutir regras que garantam a defesa do princípio. "A dimensão moral da criança tem de ser trabalhada desde a pré-escola. Ética se aprende, não é uma coisa espontânea"

Qual é a real influência da escola no desenvolvimento moral e ético?
LA TAILLE Em primeiro lugar, é preciso lembrar que criar cidadãos éticos é uma responsabilidade de toda a sociedade e suas instituições. A família, por exemplo, desempenha uma função muito importante até o fim da adolescência, enquanto tem algum poder sobre os filhos. A escola também, na medida em que apresenta experiências de convívio diferentes das que existem no ambiente familiar - se deixo meu quarto bagunçado, o problema é meu; se deixo uma classe bagunçada, o problema não é só meu. 

Cidadania e ética podem ser trabalhadas nas séries iniciais?
PERGUNTA DA LEITORA Solange Gomes, Vilhena, RO
LA TAILLE Claro. A dimensão moral da criança tem de ser tratada desde a pré-escola e se estender por toda a trajetória do aluno. O trabalho pode ser feito de forma simples ou sofisticada, não importa: o que a escola não pode é silenciar. Décadas atrás, tiraram a disciplina Educação Moral e Cívica do currículo. É bom que ela tenha sido eliminada por causa de sua ligação com a ditadura militar, mas o problema é que não colocaram nada no lugar. Moral, ética e cidadania se aprendem, não são espontâneas. 

É preciso criar aulas específicas para abordar esses temas?
LA TAILLE
Penso que a transversalidade é melhor que uma aula específica. Se ela for considerada inviável numa determinada instituição, então que se proponha uma aula. Mas, se essas discussões não encontrarem eco nas próprias relações da escola, o trabalho em sala terá pouco efeito. É preciso que o conteúdo seja inseparável do convívio. Não adianta falar das belas virtudes da justiça e da generosidade e ter um ambiente de desrespeito e indiferença. Por outro lado, se os contatos forem expressão de uma sociedade digna e solidária, faz sentido discutir justiça e generosidade. Existe uma ponte entre a vida e a reflexão sobre a vida.

Muitos educadores trabalham regras de convivência com a turma em suas aulas por meio dos combinados, discutindo normas coletivamente. Qual é sua opinião sobre essa prática?
LA TAILLE Para que um combinado seja efetivamente aceito, é preciso prestar atenção a três aspectos. Primeiro, é necessário que os princípios inspiradores norteiem o acordo e sejam explicitamente colocados, não fiquem apenas implícitos para a turma. Na escola inglesa Summerhill, por exemplo, um dos princípios fundamentais é o da igualdade. Com base nele, ficou decidido que nenhuma assembléia poderia resolver que os meninos menores serviriam aos maiores - algo que, na prática, poderia acontecer caso os mais velhos tivessem maioria em uma votação, digamos. Esse, aliás, é o segundo ponto importante: deve-se evitar ao máximo que os combinados se deem por votação. É preferível procurar o consenso, o que dá muito mais trabalho mas é bem mais rico porque desenvolve a prática de escutar o outro. Se o grupo segue muito rápido para a votação, elimina-se uma etapa preciosa que poderia ser dedicada ao diálogo. A votação não é diálogo, a votação é poder: se eu tenho mais votos que você, você perde e eu ganho. Em terceiro lugar, o professor não pode abrir mão de seu papel de autoridade, simplesmente jogando para o grupo as responsabilidades pelas sanções que o combinado pode gerar. 

Há algum caso prático que exemplifique essa atuação?
LA TAILLE Posso contar um fato real ocorrido numa excelente escola, uma das melhores que eu conheço. A professora combinou com uma turma de 5 e 6 anos que, após as brincadeiras, as crianças guardariam os brinquedos. Todas brincaram, mas duas delas resolveram não guardar o brinquedo. O que fazer nessa hora? A educadora - que depois se arrependeu profundamente - propôs que a classe criasse uma lista num pedaço de papel, escrevendo de um lado aqueles que cumpriram o combinado e do outro os que não. Resultado imediato: o menino e a menina que haviam desobedecido ao acordo ficaram desesperados porque se viram excluídos. Foram para casa e disseram que não queriam mais voltar à escola de jeito nenhum. O erro da professora foi justamente atribuir ao grupo a sanção. A tirania do grupo às vezes é pior do que a tirania de uma só pessoa. 

Qual seria a atitude correta da professora nessa situação?
LA TAILLE Ela deveria ser a guardiã do combinado, dizendo aos pequenos: "Vocês vão arrumar os brinquedos, sim. Primeiro, em razão do combinado. Segundo, porque eu estou mandando". É preciso cuidar para que a criança não substitua a figura do adulto. Ela precisa dessa referência de autoridade, de proteção, de confiança. Depois, à medida que a turma vai tomando consciência e refletindo sobre as questões morais, pouco a pouco o grupo passa a assumir essa referência. 

Então, pode-se dizer que a questão da indisciplina é um problema moral?
LA TAILLE Depende do que se entende por indisciplina. Eu vejo três definições para o termo. A primeira tem a ver com a falta de autodisciplina, que é quando o aluno não consegue organizar a tarefa. A segunda pode ser associada à desobediência. Acontece quando eu mando o aluno fazer algo e ele não faz. Eu deixo de ter autoridade porque ele não seguiu minhas ordens, mas não fui desrespeitado. O estudante pode desobedecer dizendo algo como "Senhor, me desculpe, mas eu não vou fazer a lição". É uma questão política, tem a ver com a legitimidade do posto de direção. A terceira indisciplina, o desrespeito, essa, sim, é uma questão moral. Se estou lecionando e o aluno se levanta e vai embora como se eu não existisse, fui desobedecido como autoridade e desrespeitado como pessoa, independentemente do fato de eu ser ou não professor. Isso não se justifica. Um professor com uma aula chata não me autoriza de jeito nenhum a desrespeitá-lo. 

Como co-autor do capítulo dos Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais, qual é  sua avaliação sobre o impacto desse documento na formação dos alunos? 
LA TAILLE Em geral, o que se verifica é que a tranversalidade foi pouquíssimo implementada. Ela se baseia na idéia de que um determinado tema social seja trabalhado coordenadamente por professores de várias disciplinas. Cada um deles contribuiria, dentro de sua área de atuação, para o ensino desses assuntos. Para que isso seja feito, é preciso que a equipe se reúna,  estabeleça metas e defina o que cada um vai abordar. Isso pressupõe uma elaboração complexa: o tempo é essencial para organizar as propostas, colocá-las à prova e - não vamos esquecer nunca - avaliá-las. Na prática, esbarra- se em diversos problemas, como o fato de muitos professores trabalharem em várias escolas e só comparecerem para dar aulas ou, no máximo, também às reuniões ligadas a sua disciplina. 

As escolas não estão preparadas para a transversalidade?
LA TAILLE Eu diria que não estão disponíveis para ela, até pelas condições trabalhistas que acabei de mencionar. Existem belíssimas atividades com temas transversais, mas quase sempre são levadas por um único professor. Raramente há o comprometimento institucional necessário para o projeto se tornar a realidade proposta pelos PCNs. E o governo também precisa se comprometer. 

De que forma?
LA TAILLE Os políticos prestam um grande desserviço à Educação quando cada novo governo quer  partir quase do zero, como se cada mandato fosse a Revolução Francesa, que aboliu o calendário  anterior e implantou novos meses, novas datas. Pegue-se o caso dos PCNs, feitos no governo  Fernando Henrique e atualmente deixados de lado, apenas vegetando no site do Ministério da  Educação. E o programa Parâmetros em Ação, que era essencial para instrumentalizar a proposta,  foi abandonado. Ele seria essencial para concretizar os PCNs, que são, evidentemente, teóricos.



Lino de Macedo: "Disciplina é um conteúdo como qualquer outro"
Para o psicólogo especializado em Piaget, o comportamento dos alunos em sala de aula é algo que precisa ser ensinado e varia de acordo com a atividade
 
LINO DE MACEDO  "O que é regra? Algo que se constrói por consentimento. É como em um jogo. As regras são arbitrárias, mas a criança aceita porque gosta de jogar".Foto: Karine Basílio
Ao longo da carreira, Lino de Macedo, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, se especializou no construtivismo do suíço Jean Piaget (1896-1980), na psicologia aplicada à educação e nos jogos infantis ele coordena um laboratório de pesquisas e elaboração de atividades relacionadas às brincadeiras e voltadas para a escola. Um assunto que ocupa particularmente sua atenção são os estágios de desenvolvimento da criança e a importância de o professor conhecer o que acontece em cada fase do crescimento. 

Com essa vivência, ele encara um dos temas que mais preocupam os educadores: a disciplina. Segundo o psicólogo, disciplina na escola não é questão de boa conduta nem de formação trazida de casa. "Disciplina se aprende e é do interesse de todo mundo, porque facilita a relação da gente com as coisas." O que o professor pode fazer para que a turma se comporte como deve? O exemplo é um dos caminhos. "Fala-se muito que as crianças de hoje não têm limites. Mas nós, adultos, também não temos." Macedo acaba de lançar uma nova coletânea de textos, Ensaios Pedagógicos, que tem como subtítulo a pergunta Como Construir uma Escola para Todos? Um dos capítulos trata especificamente de disciplina, tema discutido na entrevista a seguir, concedida a ESCOLA, em São Paulo.
 

É possível ensinar disciplina?
Lino de Macedo: Sim. Disciplina é uma competência escolar que as crianças aprendem como qualquer conteúdo. Condição para realizar um trabalho com êxito, é uma matéria interdisciplinar, porque dela dependem todas as outras. 

A disciplina vem de casa?
Lino de Macedo: Para alguns educadores, sim. Quem considera a disciplina uma coisa que se tem ou não se tem possui uma visão moralizante que transforma uma competência numa questão de valor. Para eles, a disciplina depende da força de vontade do aluno ou da determinação dos pais. Essa visão atribui culpa em caso de indisciplina. De fato, na escola exclusiva, anterior à atual, selecionavam-se os alunos e ficavam de fora aqueles que não se ajustavam ao comportamento desejado. Nesse caso, disciplina era mesmo um pré-requisito para a escola. Hoje, comportadas ou não, todas as crianças têm direito a estudar.
Qual o principal erro da escola em relação à disciplina?
Lino de Macedo: É pensar que existe um único tipo de disciplina e que ela só pode ser imposta. Minha idéia é que disciplina é um trabalho de todos em sala de aula. Constrói-se a melhor forma de acordo com a necessidade. Numa aula tradicional, expositiva, enquanto o professor fala ou escreve no quadro-negro, os alunos devem ficar quietos, prestar atenção e copiar. Acontece que hoje temos muitas propostas pedagógicas. Cada cultura escolar e cada atividade em sala de aula têm uma disciplina adequada a seu desenvolvimento. Dependendo da situação, a melhor pode ser o silêncio, as crianças perguntando ou conversando entre si. 

É possível ensinar disciplina pelo exemplo?
Lino de Macedo: Sim. Um erro comum é achar que a falta de disciplina é sempre do outro. Fala-se muito que as crianças de hoje não têm limites. É verdade. Mas nós, adultos, também não temos. Em uma sociedade como a nossa, um dia se almoça de manhã, outro dia de tarde, outro dia enquanto se fala ao celular. Nós é que não temos rotinas para organizar a vida das crianças. Entendemos os motivos da nossa "indisciplina" porque sabemos que para muitas pessoas a regularidade se tornou impossível. Mas, se nós não somos disciplinados, por que esperamos um comportamento regular das crianças, como se fosse uma coisa natural, espontânea, quase herdada? Podemos conquistar o aluno para um projeto de disciplina conseguindo a admiração dele. Em sua origem, a palavra disciplina tem a ver com discípulo. Discípulo é uma pessoa que tem alguém como modelo e se entrega pelo valor que atribui a essa pessoa. Com o tempo, perdeu-se o elemento de referência que havia antigamente. Isso tem de ser novamente conquistado, pouco a pouco, pelos dois lados. 

A disciplina que se aprende na escola serve para a vida toda?
Lino de Macedo: A gente tem de pensar a disciplina ao mesmo tempo como fim e como meio. É um fim porque podemos desenvolver atitudes como concentração, responsabilidade, interesse. Essas coisas viram ferramentas pessoais e de trabalho. Disciplina é também um meio, um instrumento sem o qual as coisas não acontecem ou acontecem fora do prazo ou dos padrões. 

A disciplina ajuda a desenvolver a autonomia?
Lino de Macedo: Disciplina é, cada vez mais, autodisciplina. Um exemplo é a lição de casa. Hoje em dia a maioria das famílias não tem um adulto com tempo disponível para fiscalizar o dever. A própria criança aprende a administrar essa tarefa e, se necessário, ela pede socorro. A autonomia é uma conquista, um aprendizado complexo e longo pelo qual as crianças desenvolvem a disciplina para dar conta de suas tarefas. 

O que é ser uma pessoa disciplinada?
Lino de Macedo: Ser disciplinado significa ter um comportamento subordinado a regras. Mas o que é regra? Algo que se constrói por consentimento. É como em um jogo. As regras são arbitrárias, mas a criança aceita porque gosta de jogar. Sem regra, não há jogo. Para definir regras, usamos o recurso da democracia. A classe toda discute, sob a condição de que todos aceitem o que a maioria decidir. O problema é que a minoria pode se recusar a cumprir. Deve-se combinar previamente que a não observação das regras implicará punições ou perdas. Um dos motivos que nos levam a aderir à disciplina são as conseqüências de não nos entregarmos a ela. Convencer é diferente de impor. 

Todas as obrigações devem ser submetidas a discussão?
Lino de Macedo: Não. Por exemplo: muitos pais perguntam aos filhos se eles querem comer. Eu não acho que seja uma boa pergunta. Porque, se o filho disser que não quer comer, como fica? A melhor pergunta é o que ele quer comer, dando opções. Dar autonomia não significa abrir mão do seu papel de líder e de responsável por certas coisas. Se você submeter tudo à opinião da maioria das crianças, a curto prazo elas vão decidir pelo pior. Primeiro, tenta-se convencer. O último recurso é impor. É errado tentar tratar como homogêneo algo desigual como a relação adulto e criança ou a relação professor e aluno. 

As crianças conseguem entender a importância da disciplina?
Lino de Macedo: Em 1930 Piaget escreveu um livro importante, O Julgamento Moral da Criança, e mostrou que mesmo as bem pequenas já têm valores como o gosto pelas regras, pela disciplina, pelo fazer bem-feito e por se entregar a uma tarefa coletiva. Só que o adulto não percebe. Piaget provou que é possível ver isso usando o exemplo das brincadeiras. A própria garotada se auto-regula e se submete a regras coletivas. Piaget analisou como o respeito entre iguais promove o desenvolvimento da criança. Muitos pais e professores sabem compartilhar com ela a necessidade de uma regra de forma que a criança até reclama, mas aceita, entendendo que é o melhor. 

Como ensinar a disciplina na pré-escola?
Lino de Macedo: Para alunos da Educação Infantil, digamos de 2 a 6 anos, a brincadeira, a fantasia, as histórias são ótimas estratégias. A argumentação científica não funciona com os pequenos. O recurso lúdico soa sincero para a criança, porque é uma espécie de dramatização do assunto, uma elaboração simbólica da questão. Nessa idade, outro recurso possível é simplesmente, com habilidade, dar uma ordem e pedir que ela seja cumprida. Nesse caso, é preciso deixar claro para a criança que há uma diferença entre ela e o adulto. Ela sabe disso e até se sente aliviada. 

Como ensinar a disciplina no Ensino Fundamental?
Lino de Macedo: A idade dos 7 aos 11 anos é interessante para trabalhar disciplina como uma boa regra ou uma regra sem a qual certas coisas não se desenvolvem bem. O convencimento se dá de forma empírica, com exemplos, discussão, não mais como faz-de-conta. Uma coisa é o imaginário, outra é a própria negociação da regra. O problema do convencimento no seu sentido adulto é que ele supõe um pensamento hipotético-dedutivo ("se você não fizer isso, acontece aquilo"). Mas crianças com menos de 12 anos não entendem esse pensamento. É preciso trabalhar com elas a própria construção das regras mais adequadas para uma determinada tarefa que se espera que realizem. 

A disciplina e a ordem podem prejudicar a criatividade?
Lino de Macedo: Rigidez é uma coisa, rigor é outra. Os artistas, que trabalham com criação, costumam ser super-rigorosos. Já rigidez é acreditar que uma coisa só pode ser feita de um jeito, definido arbitrariamente. A disciplina está do lado da criação, mas não é uma só. Alguns trabalham de dia, outros à noite; alguns de um modo, outros de outro. A maior parte dos artistas tem de cumprir prazos, se impõe tarefas. Se não houver disciplina, você pára no meio, esquece. Acontece que muitas vezes nós, adultos, usamos o discurso do rigor para defender nossa rigidez ou nossa incapacidade de lidar com as situações.



A indisciplina como aliada
Ela atrapalha e incomoda, mas se for trabalhada de forma adequada pode ajudá-lo a conquistar a turma neste novo ano
 
Ana Paula, da Vianna Moog, em São Paulo: o "aluno-problema" se tornou um dos mais interessados com uma dose extra de atenção e pedidos de ajuda na organização da sala. Foto: Masao Goto Filho
Ano novo, novos desafios. O maior deles, provavelmente, é conquistar a turma, fazê-la produzir mais do que o esperado, criar condições para que todos aprendam. Por isso, preparamos duas reportagens para começar as aulas com o pé direito. Veja aqui sugestões para transformar o pátio num verdadeiro ambiente educativo, capaz de reduzir a agressividade dos estudantes e ajudá-los a se tornar mais participativos e menos indisciplinados, o tema desta página. 

Como lidar com os grupinhos que não param de conversar e não participam das atividades? E com os que, semana após semana, deixam de fazer a lição? Sem falar nos problemas mais graves, como a falta de respeito dentro da classe, os xingamentos e, o pior, as agressões verbais e físicas. Pesquisa realizada no ano passado pelo Observatório do Universo Escolar, em parceria com o Ministério da Educação, constatou que a indisciplina é uma das causas mais apontadas pelos professores para o fracasso do planejamento inicial.
"A família não impõe limites!" "É a televisão que educa as crianças." "Eles não estão a fim de nada, não têm jeito!" Quantas vezes você já não ouviu (ou proferiu) essas frases? Não há dúvidas de que boa parte do problema passa mesmo pela família, ausente e desestruturada, pelos programas de TV, cada vez mais violentos, e pelo próprio jovem, cujo caráter ainda está em formação. Mas saber disso não resolve o problema. Nesta reportagem, são apontados três caminhos para compreender e resolver a questão: a diferença entre autoridade e autoritarismo, a importância de compreender a necessidade que o jovem tem de se expressar e as vantagens de construir pactos com a garotada (tema também da coluna de estréia de Julio Groppa Aquino). Tudo para transformar a indisciplina em aliada. 

Autoridade se constrói

É impossível falar de indisciplina sem pensar em autoridade. E é impossível falar de autoridade sem fazer uma ressalva: ela não é dada de mão beijada, mas é algo que se constrói. Ou seja, ter autoridade é muito diferente de ser autoritário (leia o quadro abaixo). Dizer "não faça isso", ameaçar e castigar são atitudes inúteis. O estudante precisa aprender a noção de limite e isso só ocorre quando ele percebe que há direitos e deveres para todos, sem exceção.
Um professor autoritário...
Um professor com autoridade...
...exige silêncio para ser ouvido;
...conquista a participação com atividades pertinentes;
...pede tarefas descontextualizadas;
...mostra os objetivos dos exercícios sugeridos;
...ameaça e pune;
...escuta e dialoga;
...quer que a classe aprenda do jeito que ele sabe ensinar;
...procura adequar os métodos às necessidades da turma;
...não tem certeza da importância do que está ensinando;
...valoriza o conteúdo de sua disciplina na construção do conhecimento;
...quer apenas passar conteúdos;
...adapta os conteúdos aos objetivos da educação e à realidade do aluno;
...vê o aluno como um a mais.
...vê o aluno como um ser humano.





Ana Kennya Félix, que leciona Língua Portuguesa na Escola Crescimento, em São Luís, dá uma boa amostra de como fazer isso. Certo dia, ela encontrou sua classe de 7ª série em pé de guerra por causa de uma discussão entre os meninos. Um deles desafiou-a a "botar moral". Calmamente, ela pediu que todos se sentassem e deu início a uma conversa sobre o sentido de "moral" (no caso, ordem). "Eles não esperavam esse encaminhamento e o debate serviu para a gente pensar sobre os limites de nossos atos", constata a professora. 

Um dos obstáculos mais frequentes na hora de usar o mau comportamento a favor da aprendizagem é uma atitude comum a muitos professores: encarar a indisciplina como agressão pessoal. "Não podemos nos colocar na mesma posição do jovem", adverte Julio Aquino, professor de Psicologia da Educação na Universidade de São Paulo (USP). Quando a desordem se instala, diz ele, é fundamental agir com firmeza. Como fazer isso? Não há fórmulas prontas, mas um bom caminho é discutir o caso com os envolvidos e aplicar sanções relacionadas ao ato em questão.
O professor precisa desempenhar seu papel o que inclui disposição para dialogar sobre objetivos e limitações e para mostrar ao aluno o que a escola (e a sociedade) esperam dele. Só quem tem certeza da importância do que está ensinando e domina várias metodologias consegue desatar esses nós. Maria Isabel Fragoso, professora de História do Colégio Albert Sabin, em São Paulo, sabe que sua disciplina requer muitas aulas expositivas. Mas ela notou que não conseguia atenção suficiente ao falar diante do quadro-negro. A saída foi propor à garotada a criação de encenações sobre alguns períodos históricos. Resultado: o desinteresse e a bagunça logo se transformaram em mais concentração.

Bagunça ou inquietação?

Cintia Copit Freller, professora de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP, nos ajuda a compreender essa pergunta. "A indisciplina é uma das maneiras que as crianças e os adolescentes têm de comunicar que algo não vai bem". Por trás de uma guerra de papel podem estar problemas psíquicos ou familiares. Ou um aviso de que o estudante não está integrado ao processo de ensino e aprendizagem. Cerca de 95% dos casos atendidos pelo Serviço de Orientação à Queixa Escolar, coordenado por Cintia, são resolvidos na própria classe. O truque é transformar a contestação em aliada, dando atenção ao jovem e ajudando-o a entender o que o incomoda.
De maneira geral, as escolas consideram rebeldia as transgressões às regras de convivência ou a não adequação a um modelo ideal seja em relação ao ritmo de aprendizagem (bom é quem aprende rápido) seja em relação ao comportamento (só queremos os obedientes). O primeiro passo é tomar consciência de que a inquietação é inerente à idade e faz parte do processo de desenvolvimento e de busca do conhecimento. O segundo, aceitar as diferenças. "A adolescência, em especial, é a fase de descobrir e de testar limites", diz o psicólogo português Daniel Sampaio, autor de Indisciplina: Um Signo Geracional. 

Ok, a contestação é natural em crianças e jovens, mas como lidar com ela? Ana Paula Gama, regente de uma turma de 4ª série da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vianna Moog, em São Paulo, conta o que fez para "domar" um garoto tido como o terror em pessoa. "Augusto*, então com 12 anos, era conhecido desde a 1ª série como agressivo e desinteressado. A mãe freqüentemente assistia às aulas a seu lado e ajudava nas lições de casa. Tudo em vão", lembra a professora.
 
 Ana Paula começou a pedir ajuda na arrumação da sala e na distribuição e recolhimento de material. Em pouco tempo, ele tomou a iniciativa de abandonar as carteiras do fundão e a sentar-se na frente. Passou a prestar atenção, a freqüentar as classes de reforço e a oferecer-se para executar as mais variadas tarefas. "Ela incentivou o lado bom do estudante, mostrou que ele pode ser útil", analisa Cintia Freller. Só com carinho e atenção, Ana Paula fez com que Augusto superasse o estigma de aluno-problema.

"Quando há relacionamento afetuoso, qualquer caso pode ser revertido em pouco tempo", afirma Tânia Zagury, psicóloga e pesquisadora em educação. Ana Cely Monteiro da Silva, da Escola Municipal Ciro Pimenta, em Belém, precisou de apenas três meses para incluir Márcio* na turma de 2ª série. Com 13 anos, ele não tinha amigos, ameaçava os colegas e se dizia "do mal". Faltava muito e, quando aparecia, contestava tudo. 
Cely sabia que o problema estava em casa. Por ocasião do Dia dos Pais, ela decidiu trabalhar um texto sobre relacionamento familiar. Na hora do debate, Márcio expôs o próprio drama: pai desempregado, alcoólatra e violento. "Ele tinha bom vocabulário e gostava de expor suas idéias", lembra a professora. O passo seguinte foi elogiar as colocações do menino e propor discussões sobre outros temas. Ao ver seus interesses contemplados na classe, o jovem se tornou assíduo e participativo. "Aliar as necessidades de ensino-aprendizagem às preferências da turma é uma estratégia que sempre dá certo", garante Nívea Maria de Carvalho Fabrício, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.

Contrato pedagógico

Finalmente, chegamos ao contrato pedagógico. Como todos os acordos que celebramos na vida (aluguel, casamento etc.), este também é um pacto com aspirações e obrigações. Como escreve Julio Aquino, não se trata de definir o que não é permitido fazer na sala de aula e na escola, mas de abrir um diálogo entre professor e alunos para estabelecer o que é bom para todos e aqui, o exemplo de uma escola talvez não sirva para outra.

"É nossa função dizer à turma tudo o que cabe a ela para facilitar o ensino", diz. "Em contrapartida, devemos mostrar empenho em fazer todos aprenderem. Só assim os jovens encontram sentido nos conteúdos e participam mais." 

Com responsabilidade, todos devem dizer o que querem e o que não querem que aconteça neste ano letivo que se inicia. Vale a pena redigir essa carta de intenções. Pode chamar de contrato mesmo, ou de combinado. As regras podem valer para o ano todo ou para uma atividade específica. Como em todo diálogo, esse também pressupõe a possibilidade de rever posições, se necessário. Assim, todos vão incorporar e cumprir as normas de conduta. E a indisciplina, que antes incomodava, se transforma numa grande aliada.









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uma história - Palavra Cantada

http://youtu.be/UAAypg0aCCk